3. Texto

3.1. Relato 1

Relato anônimo

Idade: 45

Gênero com que se identifica: feminino

Raça ou etnia com que se identifica: branca



Não fui uma criança gorda. Comecei a engordar na adolescência, principalmente depois da morte repentina do meu pai, quando eu tinha 13 anos. O comportamento rebelde típico da idade foi agravado com a perda, gerando revolta e aumento na ingestão de alimentos. Um certo abuso de comida, além de álcool e outras drogas.

A questão de estar acima do peso não me incomodava tanto. Até hoje não me sinto muito incomodada. Porém, sempre fui vítima de gordofobia na minha família. Todos na minha família, tanto materna quanto paterna, são pessoas magras. As únicas gordas sou eu e uma prima que, por ser mais nova que eu, não sei o quanto sofreu, e sofre. Eu sofro desde a adolescência, por parte de quase todos. Por eu ter um temperamento classificado como “brava”, nem sempre mexem explicitamente comigo. São sutis. 

O impacto é sempre maior quando chego na casa de alguma pessoa e me lançam um olhar reprovador. Cresci convivendo com o comentário de que tenho “um rosto lindo”, mas..... Mas está muito redondo, mas está gorda. “Que pena, um rosto tão lindo!” E comentários de que eu preciso perder peso, comer menos, fazer uma dieta, me exercitar. E, como tenho os olhos verdes, “ah, mas com esses olhos tão lindos!”. Tem uma piada, inclusive, que diz que é um desperdício olhos tão bonitos, claros, na verdade, em pessoas gordas. Ouvi isso na minha adolescência inteira e no começo da minha vida adulta. Ouvi muito isso da minha mãe. Outro dia ouvi isso da minha melhor amiga. Ela se referia a outra pessoa, me contava um caso. Eu a interrompi na hora e disse que era gordofobia. Ela se desculpou reiteradas vezes, eu aceitei, mas desliguei o telefone e comecei a chorar. Foi tema da minha sessão de terapia da semana seguinte.

Hoje, como no caso da minha melhor amiga, eu consigo apontar o preconceito. Talvez sejam os muitos anos sendo uma pessoa acima do peso. Assim que terminei a faculdade, saí da minha cidade e me mudei para São Paulo. Acho que foi uma forma de me afastar da minha família, daquele encontro cotidiano que não me fazia bem. Dos almoços de domingo na casa da minha avó em que a pauta eram as doenças. Do olhar reprovador das primas magras. Da minha mãe me repreendendo a cada vez que eu abria a geladeira. Eu não conseguia dizer nada ou, se dizia, era gritando e brigando, o que só tornava a situação insustentável. Hoje, quando encontro a família, ninguém toca no assunto. Não há mais os comentários gordofóbicos mas, se aparecerem, me considero capaz de apontar o preconceito, assim como fiz com minha melhor amiga algumas semanas atrás. Sei que tais comentários, mesmo adormecidos, podem reaparecer.

Como apareceram no meu ex-marido. Tivemos um longo relacionamento e o meu sobrepeso nunca foi uma questão ruim para ele. Ele é magro. E nunca me disse nada ofensivo, nunca me repreendeu por nada. Nunca fez comentários sobre o que eu comia. Engravidei duas vezes e ele sempre me ajudou no controle do peso. Entretanto, no fim do nosso relacionamento, quando decidi me separar depois de um péssimo último ano em que não éramos companheiros para absolutamente nada, ele foi preconceituoso. Disse que ninguém iria querer se relacionar comigo por conta do meu corpo, como se ele tivesse feito um favor de ter ficado todos aqueles anos comigo, de ser o pai das minhas filhas.

Fiquei arrasada na hora. Chorei muito. Entendo que o momento era delicado, mas não se justifica. Hoje, passados alguns anos, continuo gorda, e tenho certeza que essa condição não é impeditiva para relacionamentos. Às vezes sinto vergonha, mas normalmente é antes da conquista. Às vezes quero perder um pouco de peso e às vezes fico arrasada diante do espelho. Tenho ciência de que poderia perder mesmo um pouco de peso e me exercitar mais, para ter mais qualidade de vida.

O que não quero são os “mas” na minha vida. Não quero os elogios ao rosto ou aos olhos, apesar do peso, as sugestões de dieta e de exercícios. Não quero ouvir que ninguém vai se interessar por mim por eu ser gorda. Não quero ficar calada diante do que as pessoas falam. Eu quero é poder dizer que aquela fala é preconceituosa, que só reforça o estigma. E que machuca.