Depoimentos na íntegra - Material complementar

Site: Cursos de Extensão da USP
Curso: Narrativas de peso: o estigma relacionado ao peso corporal e o cuidado em saúde
Livro: Depoimentos na íntegra - Material complementar
Impresso por: Gast
Data: domingo, 19 mai. 2024, 10:29

1. Depoimentos

Esta é a pasta de depoimentos na íntegra. Ela está dividida em três partes: materiais em áudio, materiais em vídeo e materiais em texto.

Acreditamos que todos os relatos aqui presentes contribuirão enormemente para o seu desenvolvimento no curso e uma maior compreensão do estigma do peso.

Gostaríamos de ressaltar ainda que esta pasta de depoimentos na íntegra é um material complementar e, portanto, optativo.

2. Vídeos

 Os depoimentos deste capítulo estão em formato de vídeo.

2.1. Relato 1

  

  

3. Texto

Os depoimentos deste capítulo estão em formato de texto.

3.1. Relato 1

Relato anônimo

Idade: 45

Gênero com que se identifica: feminino

Raça ou etnia com que se identifica: branca



Não fui uma criança gorda. Comecei a engordar na adolescência, principalmente depois da morte repentina do meu pai, quando eu tinha 13 anos. O comportamento rebelde típico da idade foi agravado com a perda, gerando revolta e aumento na ingestão de alimentos. Um certo abuso de comida, além de álcool e outras drogas.

A questão de estar acima do peso não me incomodava tanto. Até hoje não me sinto muito incomodada. Porém, sempre fui vítima de gordofobia na minha família. Todos na minha família, tanto materna quanto paterna, são pessoas magras. As únicas gordas sou eu e uma prima que, por ser mais nova que eu, não sei o quanto sofreu, e sofre. Eu sofro desde a adolescência, por parte de quase todos. Por eu ter um temperamento classificado como “brava”, nem sempre mexem explicitamente comigo. São sutis. 

O impacto é sempre maior quando chego na casa de alguma pessoa e me lançam um olhar reprovador. Cresci convivendo com o comentário de que tenho “um rosto lindo”, mas..... Mas está muito redondo, mas está gorda. “Que pena, um rosto tão lindo!” E comentários de que eu preciso perder peso, comer menos, fazer uma dieta, me exercitar. E, como tenho os olhos verdes, “ah, mas com esses olhos tão lindos!”. Tem uma piada, inclusive, que diz que é um desperdício olhos tão bonitos, claros, na verdade, em pessoas gordas. Ouvi isso na minha adolescência inteira e no começo da minha vida adulta. Ouvi muito isso da minha mãe. Outro dia ouvi isso da minha melhor amiga. Ela se referia a outra pessoa, me contava um caso. Eu a interrompi na hora e disse que era gordofobia. Ela se desculpou reiteradas vezes, eu aceitei, mas desliguei o telefone e comecei a chorar. Foi tema da minha sessão de terapia da semana seguinte.

Hoje, como no caso da minha melhor amiga, eu consigo apontar o preconceito. Talvez sejam os muitos anos sendo uma pessoa acima do peso. Assim que terminei a faculdade, saí da minha cidade e me mudei para São Paulo. Acho que foi uma forma de me afastar da minha família, daquele encontro cotidiano que não me fazia bem. Dos almoços de domingo na casa da minha avó em que a pauta eram as doenças. Do olhar reprovador das primas magras. Da minha mãe me repreendendo a cada vez que eu abria a geladeira. Eu não conseguia dizer nada ou, se dizia, era gritando e brigando, o que só tornava a situação insustentável. Hoje, quando encontro a família, ninguém toca no assunto. Não há mais os comentários gordofóbicos mas, se aparecerem, me considero capaz de apontar o preconceito, assim como fiz com minha melhor amiga algumas semanas atrás. Sei que tais comentários, mesmo adormecidos, podem reaparecer.

Como apareceram no meu ex-marido. Tivemos um longo relacionamento e o meu sobrepeso nunca foi uma questão ruim para ele. Ele é magro. E nunca me disse nada ofensivo, nunca me repreendeu por nada. Nunca fez comentários sobre o que eu comia. Engravidei duas vezes e ele sempre me ajudou no controle do peso. Entretanto, no fim do nosso relacionamento, quando decidi me separar depois de um péssimo último ano em que não éramos companheiros para absolutamente nada, ele foi preconceituoso. Disse que ninguém iria querer se relacionar comigo por conta do meu corpo, como se ele tivesse feito um favor de ter ficado todos aqueles anos comigo, de ser o pai das minhas filhas.

Fiquei arrasada na hora. Chorei muito. Entendo que o momento era delicado, mas não se justifica. Hoje, passados alguns anos, continuo gorda, e tenho certeza que essa condição não é impeditiva para relacionamentos. Às vezes sinto vergonha, mas normalmente é antes da conquista. Às vezes quero perder um pouco de peso e às vezes fico arrasada diante do espelho. Tenho ciência de que poderia perder mesmo um pouco de peso e me exercitar mais, para ter mais qualidade de vida.

O que não quero são os “mas” na minha vida. Não quero os elogios ao rosto ou aos olhos, apesar do peso, as sugestões de dieta e de exercícios. Não quero ouvir que ninguém vai se interessar por mim por eu ser gorda. Não quero ficar calada diante do que as pessoas falam. Eu quero é poder dizer que aquela fala é preconceituosa, que só reforça o estigma. E que machuca.



3.2. Relato 2

Relato assinado.


Olá! Meu nome é Bianca, tenho 25 anos, sou uma mulher cis branca nascida em São Paulo capital, mas que já morou em várias outras cidades durante a vida. 

Eu falo sempre que é cansativo ser gordo. Não por dor nos joelhos, por cansaço ao esforço ou por sentir sono o tempo todo. Nenhum desses se aplica a mim. O que se aplica, porém, é que toda vez tenho que andar, praticamente, com um certificado de "gordo saudável" em todo lugar que vou. Não há respeito. Por ser gorda, as pessoas acham que podem - e devem - me criticar e me sugerir dietas, exercícios, médicos. As pessoas assumem que sou preguiçosa, compulsiva e doente. Não é verdade.

Semana passada, uma moça veio trabalhar fazendo faxina aqui em casa. Ela é boazinha. Vem uma vez por semana aqui em casa. Mas toda vez que ela me vê, ela nota que tem aparelhos de exercícios na minha sala de estar e fala "por que você não faz?". Eu faço. Só não na frente dela. Mas por ser gorda, ela acha que eu não faço nada o dia inteiro. Outra coisa que aconteceu foi ela ver que minha irmã de 16 anos faz exercícios muito intensos e pesados, e ela é magérrima. Um dia, ela estava suando a camisa, malhando muito, firme. Barriga chapada. E a moça disse: por que você não faz que nem sua irmã?

Bom, eu não quis dizer a ela que minha irmã tem anorexia e transtorno alimentar. Mas eu que tenho algum problema, porque sou gorda. 

Minha avó se impressiona toda vez que vê mulheres magras. Quando ela olha para mim, nota-se o nojo e desprezo ao ver que sou gorda. Uma vez ela comprou uma blusinha e me deu de natal. Quando eu vesti, ela torceu o nariz e disse "nossa, na vitrine tinha ficado tão bonita...". 

Uma vez fui num endocrinologista no Hospital São Camilo. Eu fui porque não compreendia o motivo para eu não emagrecer, mesmo me alimentando em períodos regulares com frutas, verduras, legumes, grelhados, cereais e grãos integrais, bebendo muita água diariamente e fazendo exercícios diariamente por pelo menos 1h. Quando entrei no consultório com minhas queixas, ele imprimiu um plano de dieta de 1200 calorias e me disse "corte seu pão de queijo e suco de laranja no café da manhã, senão nunca que você vai emagrecer". Detalhe: sou intolerante a lactose, não como pao de queijo. E desde quando tomo suco de laranja no café da manhã? Ah, sim. Ele sequer me perguntou o que como. Ele imprimiu o mesmo papel que ele entrega a todos os pacientes - minha mãe havia passado com ele no dia anterior, e ele falou a mesma coisa para ela e entregou o mesmo papel. 

Fui em outra endocrinologista outra vez. Falei: por favor, me ajude. Estou desesperada. Eu como muito pouco, faço exercícios, não emagreço. Pode investigar se tem algo clínico comigo?

Ela me ignorou, e me passou uma dieta chamada Pronokal, que custava 1500 reais comprando com ela, e que reduziria minhas calorias a 1200 por dia. Para quem quiser saber: é uma dieta cetogênica, passada a uma menina de 19 anos, altamente ativa fisicamente, que consistia em RAÇÕES porcionadas e água. Só. Eu comprei. Eu não fiz a dieta. Eu me frustrei. 

Eu estudo na faculdade de saúde pública da USP. A atlética, no meu ano de bixo, lançou um blusão de moletom e camisetas. Eu, super empolgada, fui comprar. Não tinha meu tamanho. Eu, bixete, não pude comprar um blusão da minha faculdade porque não servia nas roupas. O diretor da atlética me pediu desculpas posteriormente e me disse que nos próximos lançamentos haverá meu tamanho. Nem me importei. Sou a única gorda na faculdade de saúde pública inteira. Sou minoria. 

Já passei com médicos que me receitaram os mais absurdos remédios para emagrecer - desde a adolescência. Ainda sou gorda, nunca emagreci. Há mais de 10 anos continuo com o mesmo peso. 

Sabe quando foi que comecei a engordar? Quando minha mãe entrou em coma durante o meu ensino médio. Eu engordei 40kg em um ano. Sabe quem foi a única pessoa que me perguntou algo relacionado ao emocional? Minha psicóloga, em 2021, depois de uma vida inteira de "profissionais" e "familiares" e "amigos" que se preocupam tanto com meu peso que resolvem me dar "dicas e orientações para o meu próprio bem". Sem nunca se darem ao trabalho de investigar o que havia por trás.

Colesterol, pressão arterial, glicemia, tudo ok no meu corpo. Só a cabeça que não está no lugar certo. Porque estou cansada de ter que lutar contra todo mundo, todo dia, o tempo todo. 

Agora, todo profissional de saúde que eu passo sai necessariamente da planilha de indicação da página "saúde sem gordofobia" no instagram. É tão hostil ser gordo no Brasil, que criaram uma página para indicar profissionais não gordofóbicos. E é só lá que passo agora. Pago tudo no particular, mesmo tendo convênio. E é isso. 

Minha história tem muitos outros casos. Esses são só alguns. 

sorriso



3.3. Relato 3

Relato assinado.

Olá, me chamo Gustavo, tenho 18 anos, de gênero masculino e sou brasileiro descendente de família japonesa (mãe) e portuguesa (pai). 

Bom, atualmente não sou mais obeso ou sobrepeso, mas desde os 5 anos fui taxado com essas "características" em todos os locais que frequentava. Foi muito difícil pra mim lidar com diversas situações que envolviam a questão corporal e o peso em si. Sempre senti vergonha e receio de aparecer pois sentia ser julgado pelas pessoas em minha volta, até por familiares e "amigos" próximos.

Eu aprendi, mas não sei com quem, a lidar com essas situações de desconforto ignorando, fingindo gostar ou rindo das zoações. Por dentro, me sentia muito mal, porém eu não queria expressar esse sentimento com receio de piorar ainda mais. A sociedade considera "normal" rir da pessoa gorda, ou fazer dela um objeto de zoação. Me lembro de algumas situações que passei e que foram muito marcantes para mim.

Acho que muitas pessoas passaram pela mesma coisa, da atividade de se pesar na escola. Eu estava no 4º ano do ensino fundamental I. Era uma aula de educação física e me lembro muito bem desse dia. Fomos para a quadra e o professor começou a chamar um por um para se pesar. Enquanto isso, ele falou para brincarmos de pega-pega até sermos chamados. Eu fiquei super frustrado nesse momento, lembro de ficar pulando e me movimentado no lugar para "diminuir" o meu peso na hora. O professor estava pesando os alunos individualmente, mas na hora que fui chamado, todas as crianças foram me ver e queriam saber o meu peso, só porque eu era o "gordinho" da turma. Fiquei super envergonhado e desnorteado naquele momento. Uns colegas ficaram rindo e me zoando depois.

Sempre fui uma criança ativa, de fazer muitos esportes e atividades físicas, mas sempre era julgado pelos meus "amigos" que não seria capaz de acompanhá-los ou brincar no mesmo ritmo deles. Parece que eu vivia querendo provar que eu conseguiria fazer as mesmas coisas, e de fato eu conseguia, mas só por ter um corpo gordo o pessoal já achava não ser possível.

Quando me mudei de escola no ensino médio, fui para uma ETEC. Lá, já nos primeiros dias, sofri muito por ser gordo. Os garotos do 3º ano ficavam me zoando nos corredores e nas escadas todos os dias. Foi bem difícil, mas eu tentava ignorar e fingir que nada estivesse acontecendo. Não falava disso para ninguém pois sabia que se eu me queixasse para a diretoria ou para os meus pais, a situação iria piorar ainda mais. Esse bullying foi parando aos poucos quando comecei a emagrecer ao decorrer do ano. Pior de tudo era que eu sempre recebia esses comentários que eu estava ficando mais bonito simplesmente por estar mais magro. Esses "elogios" reforçavam que para ser aceito pelas pessoas eu deveria emagrecer mais ainda.

Teve uma vez que eu fui visitar uma escola antiga, já depois de ter emagrecido, e acabei encontrando uns amigos de lá. Eles fizeram alguns "elogios" sobre eu ter perdido peso e disseram que a partir de então eles iriam começar a me chamar para sair com eles. Na hora não me veio na cabeça que era um comentário totalmente incabível e gordofóbico, mas só depois de um tempo que pensei sobre isso.

O fato de eu ser gordo na minha infância moldou muito quem eu sou hoje em dia. Parte da minha personalidade continua ainda bem afetada por essas situações, por isso sou bem introvertido e fechado com pessoas que não conheço.



4. Áudio

 Os depoimentos deste capítulo estão em formato de áudio.

4.1. Teste


4.2. Relato 1